Cinema – “Salò ou Os 120 Dias de Sodoma”, dirigido por Pier Paolo Pasolini em 1975, é um filme que desafia seus espectadores ao confrontá-los com a face mais brutal da crueldade humana. Inspirado na obra do Marquês de Sade e ambientado nos últimos dias do regime fascista de Mussolini, a narrativa mergulha nas profundezas do sadismo e da perversão, apresentando uma experiência cinematográfica que beira o insuportável. Longe de ser apenas um filme provocativo, “Salò” é uma alegoria sobre poder e desumanização, revelando que a exploração do mal pode ser mais presente e cotidiana do que imaginamos.
“Uma obra-prima, a representação mais convincente da crueldade humana na história do cinema”
Gilbert Adair, Independent on Sunday
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A Visão de Pasolini: Cinema como Choque Filosófico
Pasolini não construiu sua obra para agradar nem para ser palatável. Como em suas outras produções, a intenção é clara: chocar e provocar reflexão. No entanto, em “Salò”, o choque vai além da estética; ele se instala no âmago da experiência humana. Dividido em círculos, numa referência ao inferno de Dante, o filme expõe 16 jovens presos em uma mansão e submetidos a torturas físicas e psicológicas por quatro fascistas.
A escolha do contexto histórico do fascismo não é casual. Para Pasolini, a obra é uma crítica à opressão institucionalizada, que se manifesta não apenas na política, mas na própria sociedade contemporânea. Embora alguns interpretem o filme como uma denúncia ao fascismo ou uma crítica ao capitalismo, ele vai mais fundo: a maldade aqui não é um desvio de conduta, mas uma norma social.
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A Interpretação de Sade e o Cinema como Experiência de Mal-Estar
Assim como a obra original de Sade, o filme não oferece um caminho para a redenção ou esperança. O mal é exposto de forma crua, sem adornos ou justificativas. Em “Salò”, não há personagens com arcos de redenção; cada cena é uma demonstração do prazer que os algozes encontram na humilhação de suas vítimas. A ideia central do filme é que o poder absoluto corrompe não apenas quem o detém, mas também aqueles que o sofrem, fazendo com que todos se tornem engrenagens na maquinaria da crueldade.
O presidente, interpretado por Aldo Valletti, exemplifica esse prazer sádico com olhos estrábicos e um sorriso perturbador. Em uma cena emblemática, um dos algozes avisa: “Não pense que suas lágrimas me comovem. Elas só me dão mais tesão.” Esse tipo de diálogo não é apenas chocante pela frieza; ele destaca a indiferença absoluta diante do sofrimento alheio, tornando clara a filosofia do filme: o sofrimento é uma moeda de troca e o prazer nasce da dor infligida ao outro.
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A Estética da Crueza e a Ausência de Virtuosismo
Ao contrário de obras anteriores, como “O Evangelho Segundo São Mateus” ou “Teorema”, Pasolini renuncia a qualquer virtuosismo técnico em “Salò”. A câmera é estática, como se o diretor se recusasse a embelezar o horror que registra. A ausência de cortes rápidos nas cenas mais violentas intensifica o desconforto do espectador, tornando cada minuto uma experiência agonizante. Não há alívio, nem mesmo na trilha sonora, que se mantém diegética: a pianista da mansão toca Chopin enquanto atrocidades acontecem, reforçando a indiferença entre arte e barbárie.
Essa opção estética faz parte do objetivo maior de Pasolini: mostrar que a crueldade não precisa de adornos para ser compreendida. A escolha por atores amadores também contribui para a sensação de naturalidade brutal, como se as vítimas e algozes fossem pessoas comuns, tirando qualquer distância segura entre o espectador e a narrativa.
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Um Filme Detestado, mas Fundamental
“Salò ou Os 120 Dias de Sodoma” continua sendo um filme divisivo e frequentemente detestado. Sua exibição provoca repulsa, e não é incomum que espectadores abandonem a sala antes do final. No entanto, essa reação é, de certo modo, parte da intenção de Pasolini: obrigar o público a encarar aquilo que frequentemente é ignorado ou disfarçado em nossa sociedade — o prazer na dor alheia e o poder que se alimenta da desumanização.
Assim como o Marquês de Sade foi rejeitado tanto por absolutistas quanto por revolucionários, Pasolini também se colocou à margem de qualquer alinhamento ideológico confortável. Seu cinema não oferece respostas fáceis. Ao contrário, ele nos desafia a questionar até que ponto somos todos cúmplices das estruturas de poder que permitem que o mal floresça. O filme encerra com uma cena perturbadora de jovens dançando, como se a barbárie tivesse se tornado uma celebração macabra e inevitável.
Salò como Reflexão sobre o Mal Contemporâneo
“Salò ou Os 120 Dias de Sodoma” é um filme que não se assiste para desfrutar, mas para refletir. Pasolini convida o público a mergulhar na escuridão da alma humana, onde a perversão e o abuso se tornam práticas normatizadas. Mais do que uma obra de crítica política ou social, “Salò” é um tratado cinematográfico sobre o mal — um mal que, segundo Pasolini, não é um acidente ou uma exceção, mas uma constante que define a nossa condição.
Assistir a esse filme é um exercício de resistência e desconforto. Ele não oferece catarse, mas sim uma mensagem incômoda: o verdadeiro horror não está apenas nas histórias extremas, mas no cotidiano, nas pequenas crueldades que aceitamos sem questionar.